Deus nos livre de um Brasil evangélico
Começo este texto com uns 15
anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram permitidos em São
Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles, em avenidas, com a
mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus, declare
isso”.
Rumino o recado desde então.
Represei qualquer reação, mas hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma
comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil
tornar-se evangélico. A mensagem subliminar da grande placa, para quem conhece a
cultura do movimento, era de que os evangélicos sonham com o dia quando a
cidade, o estado, o país se converterem em massa e a terra dos tupiniquins virar
num país legitimamente evangélico.
Quando afirmo que o sonho é
que impere o movimento evangélico, não me refiro ao cristianismo, mas a esse
subgrupo do cristianismo e do protestantismo conhecido como Movimento
Evangélico. E a esse movimento não interessa que haja um veloz crescimento entre
católicos ou que ortodoxos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem
que virar “crente”, com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na
madeira).
Avanços numéricos de
evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se
acontecesse essa tal levedação radical do Brasil.
Imagino uma Genebra brasileira
e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo moreno. Mas, como os novos
puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Não gosto de
pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou
“Tatuagem” do Chico. Será que prevaleceriam as paupérrimas poesias do
cancioneiro gospel? As rádios tocariam sem parar “Vou buscar o que é meu”,
“Rompendo em Fé”?
Uma história minimamente
parecida com a dos puritanos provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios.
Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de
Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos
Drummond de Andrade?
Como ficaria a Universidade em
um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam,
como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse o alucinado Charles
Darwin. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória
em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria
dos hereges loucos e Derridá nunca teria uma tradução para o
português.
Mozart, Gauguin, Michelangelo,
Picasso? No máximo, pesquisados como desajustados para ganharem o rótulo de
loucos, pederastas, hereges.
Um Brasil evangélico não teria
folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não
seriam barulhentas. O futebol morreria. Todos seriam proibidos de ir ao estádio
ou de ligar a televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada, de várzea
aconteceria quando?
Um Brasil evangélico
significaria que o fisiologismo político prevaleceu; basta uma espiada no
histórico de Suas Excelências nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para saber
que isso aconteceria.
Um Brasil evangélico
significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende
por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura do
Norte. Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica e
viria a criar uma elite religiosa, os ungidos, mais perversa que a dos aiatolás
iranianos.
Cada vez que um evangélico
critica a Rede Globo eu me flagro a perguntar: Como seria uma emissora liderada
por eles? Adianto a resposta: insípida, brega, chata, horrorosa,
irritante.
Prefiro, sem pestanejar,
textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando
Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado a qualquer livro da série
“Deixados para Trás” ou do Max Lucado.
Toda a teocracia se tornará
totalitária, toda a tentativa de homogeneizar a cultura, obscurantista e todo o
esforço de higienizar os costumes, moralista.
O projeto cristão visa
preparar para a vida. Cristo não pretendeu anular os costumes dos povos
não-judeus. Daí ele dizer que a fé de um centurião adorador de ídolos era
singular; e entre seus criteriosos pares ninguém tinha uma espiritualidade digna
de elogio como aquele soldado que cuidou do escravo.
Levar a boa notícia não
significa exportar uma cultura, criar um dialeto, forçar uma ética. Evangelizar
é anunciar que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar,
encenar, praticar a justiça e criar meios de solidariedade; Deus não é rival da
liberdade humana, mas seu maior incentivador.
Portanto, Deus nos livre de um
Brasil evangélico.
Soli Deo Gloria
7-02-11
Ricardo Gondin, é pastor da
Igreja Betesda de São Paulo e presidente da Convenção Nacional da
denominação.
Fonte: Site Ricardo
Gondin / http://www.escandalodagraca.com/
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